Abaixo uma matéria publicada no site do Terra.
'Escola, não!' Entenda motivos que levam ao estudo em casa
25 FEV2015
13h58
atualizado às 16h34
Em 1942, a judia Anne Frank foi obrigada
a deixar a escola para se esconder com a família durante a Segunda Guerra
Mundial. A solução encontrada pelo pai foi ensinar a filha em casa no período
em que ela não pôde frequentar as aulas. Não somente situações extremas como
essa podem levar pais a optarem por retirar um filho da escola. Às vezes, o
estudante não se adapta ao ritmo de aprendizado da instituição.
Cerca de duas mil famílias fazem
parte da Aned no Brasil
Foto: Eco
Desenvolvimento
No Brasil, em Porto Alegre, um casal espera a decisão da
promotoria por ter retirado a filha de 13 anos da escola. Os pais não
concordavam com algumas diretrizes da instituição de ensino. Procurados pelo
Terra, eles preferiram não se manifestar para não haver interferência no
processo judicial.
Diretor de relações institucionais da Associação Nacional de
Educação Domiciliar (Aned), Ricardo Dias, aponta o bullying e a ineficácia da
escola como motivos que podem levar auma decisão como a do casal gaúcho. Ele,
fundador e primeiro presidente da entidade, e a esposa, Lílian, retiraram os
filhos, Lorena e Guilherme, da escola quando eles estavam na sétima e terceira
série, respectivamente. Hoje com 17 anos, a jovem passou em dois vestibulares e
conquistou os 540 pontos necessários para obter o certificado por meio da
realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A decisão de deixar a
escola partiu de Lorena, cansada de greves e falta de professoras em sala de
aula.
Segundo Dias, em contraponto ao chamado decoreba, os filhos
são estimulados a terem autonomia e se tornarem autodidatas. “Ensinamos o filho
a aprender”, afirma. Se há alguma dificuldade de aprendizagem, são procurados
professores particulares ou grupos de apoio formados por famílias que fizeram a
mesma opção. Os jovens também frequentam cursos de línguas, como inglês e
espanhol.
Cleber Nunes tem uma visão semelhante à de Dias. Para ele, a
escola obrigatória é prejudicial à criança. Em 2006, chegou à conclusão que “se
um pai se preocupa com a real saúde moral, espiritual de seu filho, a escola
deve ser a última opção”. Os filhos Jonatas e Davi, que estavam com 11 e 12
anos, respectivamente, passaram a estudar em casa com o apoio, também, da mãe,
Bernardeth. Já a filha mais nova, Ana, não chegou sequer a ser matriculada em
uma instituição de ensino. “Uma criança não aprende sob pressão. Pelo
contrário, isso pode gerar aversão ao estudo. Não há nenhum ponto que pese a
favor da institucionalização do ensino”, acredita Nunes.
No Brasil
Em Porto Alegre, um casal espera a decisão da promotoria por
ter retirado a filha de 13 anos da escola. Os pais não concordavam com algumas
diretrizes da instituição de ensino. Procurados pelo Terra, eles preferiram não
se manifestar para não haver interferência no processo judicial.
Atualmente, no Brasil, cerca de duas mil famílias fazem parte
da Aned. Elas estão divididas em pessoas que praticam o homeschooling - estudo
em casa - ou a desescolarização. A segunda tem como preceitos o aprendizado
livre e o desenvolvimento dos potenciais de cada pessoa sem obstáculos
institucionais e sem se prender a um currículo pré-formatado. No caso do
homeschooling, o currículo escolar tende a ser transferido para dentro de casa.
Davi e Jonatas, filhos de Nunes, aprendem na prática os
conteúdos de acordo com a demanda. Os jovens são empreendedores e desenvolvem
projetos de tecnologia, além de administrarem a empresa da família. Segundo o
pai, eles foram preparados desde cedo para buscar o conhecimento na medida em
que precisam dele. “Para nós, a informação só tem valor se for para formar. Em
outras palavras, não criamos filhos para serem simplesmente sabidos, mas
sábios”, afirma.
Moradora do interior de Santa Catarina, A., que prefere não
se identificar, faz parte de um grupo de 145 famílias que optaram pela educação
domiciliar. Mãe de uma criança de cinco anos, é casada e ensina o filho em casa
enquanto o marido, designer industrial, é o provedor da família. Segundo ela, o
mesmo acontece com cerca de dez famílias onde vive.
Cerca de 90% das mães do grupo possuem ensino superior e, até
mesmo, especialização e mestrado. Entretanto, largaram as profissões para darem
formação intelectual aos filhos. “Com um governo que adota métodos que vai
contra nossos princípios, e profissionais sem o domínio da matéria a lecionar,
temos certeza de que é o melhor para nossos filhos”, diz. Ela conta que a
maioria das crianças está sendo alfabetizada em mais de um idioma além de
português, como inglês, espanhol e alemão.
Socialização no ensino domiciliar é questionada
Pesquisador em neurociência, Jô Furlan aponta a ausência de
socialização como uma das desvantagens do ensino domiciliar. Para o médico, um
dos riscos de retirar uma criança da escola é o não aprendizado quanto ao
respeito à diversidade e à pluralidade. “Quando se tira a capacidade de
interação, não se sabe lidar com diversas emoções”, avalia. Ele acredita que “o
conhecimento pelo conhecimento não adianta, é preciso ter relacionamento
interpessoal”. O especialista salienta, contudo, que em casos extremos - como o
da própria Anne Frank, citado anteriormente, ou em situações de dependência
química -, quando não se pode frequentar a escola, o ensino em casa pode ser
uma opção. “Seria uma boa escolha para não deixar de estudar, mas sempre será
considerada a última opção”, afirma.
Nunes discorda, apontando que “confinar uma criança com o
objetivo de socializar e aprender acaba por promover uma socialização e uma
aprendizagem deficientes ou privá-la dos dois”. Já Dias considera que há uma
socialização pobre durante os períodos letivos, ou seja, o convívio restrito a
pessoas da mesma classe e faixa etária. “Nossos filhos frequentam diversos
eventos, como clubes e teatros, possuem um convívio”, diz. Ele conta que foram
construídos relacionamentos entre diversas crianças e adolescentes que não
frequentam a escola, além dos pais, que acabam formando uma espécie de rede de
trocas de conhecimento e convívio. O mesmo acontece com o grupo de A., no qual
os filhos são levados em parquinhos, fazem natação e têm aulas de piano.
Legislação
Embora o ensino domiciliar seja permitido em diversos países
e bastante difundido em outros, como nos Estados Unidos, no Brasil, isso não
acontece. Por não haver regulamentação específica, as leis existentes ficam
submetidas à interpretação do Ministério Público, e cada caso é analisado
individualmente.
Por isso, foi criado em 2012 o projeto de lei (PL) 3179, que
visa acrescentar um parágrafo ao artigo 23 da Lei nº 9.394, de 1996, a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), para dispor sobre a
possibilidade de oferta domiciliar da educação básica. Criado pelo deputado
Lincoln Portela (PR-MG), o PL está aguardando designação de relator na Comissão
de Educação.
Em 2014, Dias chegou a se mudar com a família para Brasília a
fim de acompanhar de perto a tramitação na Câmara e explicar aos deputados que
compõem a CE como funciona a educação domiciliar. Segundo ele, “os pais estão
sendo tratados como bandidos pelo Judiciário”. Tanto ele quanto Nunes já foram
notificados pela justiça. “Aos 12 e 13 anos, eles (os filhos) passaram em 7º e
13º lugar em um vestibular de direito, além de terem sido aprovados nos testes
de conhecimento impostos pela Justiça. Isso constitui uma prova inequívoca de
que o alvo do Estado não é a educação, mas tão somente confinar crianças em uma
sala de aula, mesmo que não estejam aprendendo de fato”, diz.
De acordo com o coordenador do conselho tutelar de Porto
Alegre, Leandro Barbosa, a lei é clara e diz que é preciso matricular os filhos
em escolas. Ele se embasa no artigo 246 do Código Penal (CP), que afirma que
deixar, sem justa causa, de prover instrução primária do filho em idade escolar
se constitui em abandono intelectual e, para tal, há detenção de 15 dias a um
mês ou aplicação de multa.
No artigo 6º da LDB, por sua vez, está determinado que “é
dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação
básica a partir dos quatro anos de idade” - a lei foi alterada em 2013 e vigora
a partir de 2016, antes disso, determinava a obrigatoriedade a partir dos seis
anos. Da mesma forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente aponta, no artigo
55, que “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou
pupilos na rede regular de ensino”. Entretanto, o artigo 1.634 do Código Civil
costuma ser usado como contra-argumento, uma vez que afirma, no inciso I, que
cabe aos pais dirigir-lhes a criação e educação.